30/06/2011

O HOMEM QUE ESCREVIA NOVELAS


Um homem andava inquieto pela praia deserta, por vezes pisava na água, outras erguia os braços abertos para o céu e em outras vezes parava com o olhar fixo no horizonte. Eu sabia quem era ele e entendia, sem ele saber, a sua angústia. Não me cabia, entretanto, ajudá-lo. Nem ele aceitaria se eu me oferecesse.

Um ônibus cheio de turistas parou próximo ao local onde ele estava. Algumas pessoas o reconheceram e diziam umas para as outras - Ele é o homem que escreve novelas! O barulho das pessoas o irritou. As tentativas de aproximarem-se dele foram frustradas pela sua saída repentina. Eu quis segui-lo, todavia ele foi mais rápido e logo o perdi de vista. Sabia, porém, que amanhã ele estaria ali de volta.

Aquele homem era autor da novela de maior audiência do momento. Todos queriam questioná-lo sobre o assassino misterioso, que deixava a todos assustados e curiosos.

À noite assistindo a novela, sentado em minha confortável poltrona, eu imaginava o desfecho daquela trama. O seu senso de justiça sempre aflorava ao determinar o destino de cada um de seus personagens. Mas desta vez ele apaixonara-se pela mais bela vilã que criara - não queria matá-la, nem queria fazê-la sofrer. Sentia que desta forma estava sendo injusto para com todos os outros personagens - todos lhe cobravam um desfecho trágico para ela. Ele sofria com isso. Adorava a todos eles. Cada um extraíra um pouco da sua alma, o que fazia com que sofresse mais do que de outras vezes ao traçar-lhes os destinos.

No dia seguinte, no mesmo horário, encontrei-o sentado na areia rabiscando alguma coisa no chão. Não havia como enxergar o que ele fazia, até que, já de pé, ele desenhou um enorme rosto, com uma boca bem definida e olhos puxados emoldurando-o com cabelos cacheados. Sabia que aqueles traços eram da sua bela vilã, intrigou-me, entretanto, um pequeno círculo que fizera em sua testa, depois voltou a sentar-se no chão. Percebi que chorava. Não entendia seu sofrimento! De repente chegou a sua idolatrada atriz. Discutiram. Com movimentos bruscos ela apagou do chão o desenho que ele fizera. Aproximei-me sem ser notado e ouvi a discussão.

Disse ela:

- Você não pode matá-la! Tantas pessoas como ela se dão bem na vida. Por que fazer esse desfecho?

A sua vilã não era apenas uma pessoa má, era terrivelmente cruel e vingativa. Sentiu, ali, que deveria matá-la o quanto antes, precisava urgentemente salvar sua bela atriz. Abraçou-a com delicadeza sentando-a na areia ao seu lado e, carinhosamente, disse:

- Não compete a você decidir o destino dela. Você tem que fazer o que eu vou determinar que seja feito.

Ela, nervosa, contestou:

- Eu sou contra a idéia de matá-la! Dê-lhe um sofrimento capaz de fazê-la mudar e faça com que ela peça perdão a todos que fez sofrer.

Ele a olhou demonstrando estar realmente preocupado sentia que ela estava perdendo a sua identidade - ela entregara-se por completo àquele personagem e não estava conseguindo separar-se dele, os fantasmas de suas vítimas a atormentavam. Ele sentia-se culpado pelo seu sofrimento. Toda maldade que fora capaz de imaginar pusera para que ela incorporasse e agora era preciso que, a bem da moral da história, ela pagasse pelo que fez. Porém o lado sedutor do personagem o fascinava - Ela era sua criação! Cada palavra, cada sorriso, cada maldade, tudo era fruto da sua mente e agora ele também sofria por expurgá-la. Mas tinha que libertar a sua adorada atriz daquele personagem perverso.

Ambos permaneceram abraçados sentados na areia da praia. Voltei para a minha realidade. Sabia que veria em breve o resultado daquele encontro.

Enfim o grande dia. Cena a cena tudo ia se resolvendo: Crianças brincando, casamentos se concretizando. Um a um cada personagem ia tendo seu destino traçado. Chegara o momento crucial. Numa grande festa, no sexto andar de um edifício, a sua bela vilã surge na sacada da varanda. Todos os olhares se voltam para ela. Porém, sem que ela pudesse evitar, todas as suas maldades, todos os seus assassinatos foram revelados. Ela, num gesto rápido, toma como refém uma criança, ameaçando jogá-la pela janela.

Alívio! Entraram os comerciais!

Pensei: Ele não será capaz de fazer esse desfecho. Ninguém faria isso a uma inocente criança! Seria demais para com os telespectadores e, principalmente, para com a sua bela atriz.

A novela reiniciou e, aliviado, percebi que o homem que escrevia novelas não fora cruel a ponto de fazê-la cometer mais esse crime. Numa seqüência, em câmara lenta, uma bala brilhante atravessa a sala e penetra na testa da vilã atravessando-lhe a cabeça. Porém o mais surpreendente estava por vir - o tiro partira dele, do homem que escrevia novelas. Ele entrava encenando um louco! E fez-se o grande desfecho. Ao final todos se abraçaram.

O homem que escrevia novelas saiu em silêncio. Sabia que a vida não era uma novela e temia pelos grandes desfechos da vida real.


Suely Sousa

25/06/2011

TELHADO DE VIDRO

Quando me debrucei para ver o tempo
Ele não mais navegava sobre o rio
Vi-o veloz atravessando os ares!
Entre nós um telhado de vidro
Frio
Seco
Inquebrável
Sobre ele joguei o calor do meu corpo.
Tentativa vã de destruí-lo!
E a vida seguiu no ritmo frenético do tempo
Indiferente ao meu desejo.

Suely Sousa

MEMORIAL FEMININO

Vestígios de lembranças,
fragmentadas pelo tempo,
dançam sobre eu contemporânea.
Mistura acre doce de sonhos e desejos!
Mulheres que fui
Mulheres que habitaram em mim
Mulheres esculpidas pelo tempo
trafegam inquietas dentro de mim.
Buscam elas a adolescente
que do casulo não despencou
ou a mulher que virou rosa
quando beijou-lhe um beija-flor,
quiçá busquem um encontro
onde tudo se mesclou
memorial vivo e pulsante
de uma mulher...
que a tantas outras se somou.

Suely Sousa

ECOS DO MUNDO (HOMENAGEM A CHICO SCIENCE)




Chico Science olhou para um mangue
e a biodiversidade o encantou,
vidas sobre vidas vivendo,
no meio do lama
viu nascer uma flor.
Brotou forte ali a ideia
de aquelas vidas exaltar
de um modo que tudo dissesse
da beleza que havia lá!
Da terra que virou lama.
Da lama que gera vidas.
Há tantas vidas na lama...
Ali a lama era vida!
E um batuque se fez no compasso
da rima da vida rasteira
rasgando o que tinha na lama
misturando a música estrangeira.
Juntaram-se os ecos do mundo
e esse som passou a gritar
o som do silêncio da lama
e da lama pôs-se a cantar!
Mas do grito veio o silêncio
de uma vida a se findar
na divisa das duas cidades
que tanto aprendera a amar.


Suely Sousa

Recife/PE